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Um Estranho no Lago

Atenção: esse texto contém spoilers. Um Estranho no Lago poderia se chamar La “pégation” sur l’herbe, uma alusão ao quadro O Almoço na Relva de Édouard Manet que deu início ao colorido movimento impressionista. Mas, em alguns minutos de filme, a leveza da pegação descompromissada, o naturismo sob a luz do verão e a tranquilidade da água do lago — onde homens gays  passam seus dias a nadar, tomar Sol e passear pelo bosque atrás de sexo casual —, dá lugar à tensão da perigosa atração que Franck (lindinho), o protagonista, passa a sentir por Michel, depois de vê-lo matar por afogamento um garoto com quem saía. Em alguns grupos sociais, é comum que mulheres e homens gays  se apaixonem por homens perigosos, que, muitas vezes, colocam sua vida em risco. Ainda mais quando o homem perigoso é lindo e atraente, como no caso de Michel. E, assim como uma namorada de traficante, Franck passa a ser cúmplice do crime, seja mentindo para o inspetor quando iniciam-se as investigação seja querendo ainda mais a presença de Michel em sua vida.

O filme se passa em dez dias. E é interessante o recurso que o diretor Alain Guiraudie utilizou para mostrar a passagem do tempo. Cada dia começa com a mesma cena e o mesmo ângulo: a vista da área onde os frequentadores do lago estacionam seu carros, e Franck chegando e parando o seu. Os dias ensolarados (quando vê-se tudo: o lago, as árvores, os corpos nus e as cenas explícitas de sexo) contrastam com a total escuridão do anoitecer (tem horas que a tela fica completamente preta a não ser por umas linhas ou faróis dos carros). E a escuridão vai se tornando cada vez mais apavorante conforme a história vai se desenrolando.

Além de Franck e Michel, há outro personagem: Henri, um homem heterossexual que, depois de terminar seu casamento, passa seus dias olhando para o lago. Franck é a única pessoa com quem Henri conversa e, talvez por isso, Henri passa sentir um tipo de amor platônico por ele, que não envolve atração física; uma amizade que começa num local onde as pessoas vão exclusivamente por sexo. Henri, sempre sozinho e sentado como um Buda ao lado de uma árvore, é a percepção do filme. Franck vê e não considera; Henri não vê e tudo sabe.

Um Estranho no Lago é um filme que aborda um tema muito presente na vida dos gays em todo o mundo: os parques, banheiros e outros locais públicos em que homens se encontram, durante o dia e a noite, para sexo anônimo. E é a partir daí que surge um dos diálogos mais interessantes do filme, entre o inspetor e Franck sobre a indiferença dos frequentadores do lago com relação ao assassinato de um garoto gay:

Inspetor: _ Desse cara, você também não sabe o nome, o telefone, nada… Você não acha estranho que a gente tenha encontrado um corpo na água alguns dias atrás e, no dia seguinte, todo mundo está de volta, caçando, como se nada tivesse acontecido?
Franck: _ A gente não pode parar de viver.
Inspetor: _ Um de vocês é assassinado e isso não te incomoda? Você pode imaginar esse pobre menino, três dias na água, seu carro parado aqui, suas coisas na beira do lago, e ninguém percebeu nada, nem mesmo o amante dele. Eu sei que eles não eram namorados. Porém, eu às vezes acho que vocês têm uma maneira muito estranha de amar. Você consegue imaginar a solidão desse garoto? Não estou pedindo compaixão ou solidariedade, mas isso deveria te preocupar um pouco, mesmo que fosse uma preocupação apenas com você mesmo. Pode ser que tenha um serial killer homofóbico na região. Faça alguma coisa antes que algum mal aconteça a você.

São Paulo, 17 de dezembro de 2013, 21h40, Sala 4 do Reserva Cultural. 

Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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